Maria José Oliveira – “Tubolagem”

EXPOSIÇÃO ATUAL

Maria José Oliveira – “Tubolagem”

Folha de Sala (PDF)

 

Texto de

Adelaide Duarte*

 

Tubolagem é uma palavra que não figura nos principais dicionários da língua portuguesa. Palavra virgem, não fabricada, alude foneticamente ao nome feminino tubagem e etimologicamente a tubo acrescido do sufixo agem. Sugere sistema ou conduta orientadora de fluídos por meio de tubos, mas, também, a ideia de durabilidade e resistência, de estrutura e do suporte, conceitos a partir dos quais deriva muito da obra de Maria José Oliveira.

 

Trazer tubolagem com g para título decorre de uma conversa tida no mês de agosto entre Maria José Oliveira e Alberto Caetano, seu amigo, sobre a peça Coluna Vertebral. A peça, agora na galeria, configura a estrutura da exposição. Propuseram aquele título a discussão, na mesa de trabalho da galeria. Zé Mário manuscreveu tubolagem num caderno de notas. Surpreendia-se com o que ouvia e encantava-se com as peças que devagar se iam desembrulhando à sua frente para o ilustrar. Para fixar o termo e não o confundir com tubagem, soletrava-se sílaba a sílaba tu-bo-la-gem. À medida que nos familiarizávamos com a sua estranheza, e nos interrogávamos sobre o seu sentido, a palavra ia ganhando consenso. Confirmava-o Zé Mário, com acutilante ironia, “eu só trabalho com jovens artistas”. Recordava a Lygia Pape e a Ana Vieira, dois nomes da arte em permanente inventividade, que, situando-se numa “ponta do iceberg”, dizia-nos, a obra de ambas avançava sem medos e com ousadia. Maria José acrescentou a italo-francesa Gina Pane, trazendo à memória a performance A Hot Afternoon 3 (1978) realizada na Quadrum, que, perante um público espantado, trespassou o (im)possível vidro da galeria – e desenha em gesto no ar os parênteses do prefixo im.

 

Maria José Oliveira é uma jovem artista com um corpus de trabalho em permanente experimentação e performatividade. Com a capacidade de ativar emoções a partir de objetos simples, num toque de Midas, Maria José fá-lo, emprestando o seu corpo às obras, a coluna, os braços, o bater do coração, vestindo-as, respirando-as, tocando-lhes, concedendo-lhes alma e sensibilidade num silêncio transformador.

 

Uma grande parte da obra de Maria José Oliveira começa com a coluna vertebral, quando a artista aproxima a sua própria estrutura óssea à peça que está a montar. O seu trabalho é suportado por uma construção em tubo, com recurso a materiais pobres, preferencialmente o papel, escolhido pelas suas características de leveza, de maleabilidade e acessibilidade, podendo mesmo fazer uso dos tubos do papel higiénico. O uso de materiais não convencionais, por vezes orgânicos, recolhidos da natureza, de uma frágil doçura e potencialmente efémeros, convida à revisitação do radicalismo da arte povera que a Maria José expande, ao longo de toda a sua obra. Maria José identifica-se com este movimento artístico na maneira como aproveita os materiais e lhes dá vida. Os materiais que parecem inertes, para si estão plenos de possibilidades. Maria José inventa vidas aos anteriores “despojos”, vê neles para além da simplicidade funcional, transmuta-os, finta-lhes o fim de ciclo a que aparentam destinados, para lhes criar uma eternidade outra. “Todos os materiais são bons, o que é preciso é não ter medo”, afirma a “feiticeira dos materiais” em conversa com Alberto Caetano, e por ele assim apelidada. Maria José anui e acrescenta: “só é pena não ser feiticeira de outras coisas”.

 

“Posta a ferro e fogo”, como afirma, Maria José entrega-se à feitura das peças, usando a sua própria fragilidade física, a sua coluna, como matéria, pois, para si, arte é alquimia, é procedimento, é transmutação de materiais em outros, é harmonia na relação com as coisas, os objetos, sem nunca desligar a vida nesse procedimento. Os materiais são transformados, encaixados. Maria José capta-lhes a essência e deixa-se também mudar por eles. Um corpete, a coluna vertebral, a cabaia, a gaveta de arquivo, uma manga de casaco, ilustram este processo de pensar e de atuar.

 

Além de recoletados, os materiais também chegam a si por via daqueles que lhe são próximos. Muitos amigos juntam materiais que sabem ser apetecíveis à artista, como as espinhas de peixe, as caixas vazias, o cartão, as podas do pessegueiro, o tijolo, as folhas de árvores, ou as saquetas de chá usadas, uma tubolagem, uma estrutura, que será depois preenchida pela artista. Esses materiais coletados também trazem consigo afetos e acrescentam à transmutação do fazer artístico, a alquimia, a memória da sua origem.

 

Tubolagem reúne obras diferentes umas das outras, realizadas nas últimas três décadas, juntas pelo valor que cada uma representa. É uma exposição memória, a da artista e da feitura destas peças, mas igualmente prospetiva na perseverança de uma linha de trabalho e de um modo de olhar a vida. As peças aludem a histórias, que normalmente não conta e que na accrochage são poeticamente engendradas. Algumas dessas histórias também sugerem surrealismo na composição inusitada e subversiva [Le Dur Désir de Durer… (Paul Éluard), 1996, 1998, 2021, 2024; Mais perto de ti, 2004]; outras remetem para a tradição da história da arte (Alquimia de Bosch, 2017), introduzindo nela a sua própria história. Algumas citam a literatura, a filosofia e o pensamento (O visível e invisível Merleau-Ponty, 2021), outras são sujeitas a releituras, e outras ainda são mostradas ao público pela primeira vez (Aventuroso, 2018).

 

Em comum, questionam sobre a matéria que as constitui e convidam a pensar a casa como laboratório, como parte do sítio onde se trabalha. Tudo o que envolve a casa serve a Maria José de instrumento, é uma espécie de pincel. A artista usa o café para fazer aguadas, obtendo diferentes tons de castanho sobre papel, usa o pão e a massa de pão que queima a vela ou a gás, usa o fogo como ferramenta para perfurar papel ou plástico, a casca de ovo é para si alquímica, a banheira serve de tanque para tingir tecido ou papel, o desenho do neto sugere-lhe o rosto de Jean Cocteau surrealista, e integra-o em obra maior.

 

Maria José Oliveira reaviva a memória em cada exposição, a do espaço que usa e a dos objetos que nele inscreve. Reforça pequenas fendas, assume destacamentos de tinta, as marcas que os pregos deixam nas paredes. Para Maria José estes sinais são os da passagem do tempo e, ao invés de os evitar e disfarçar, agarra-os sem constrangimentos exteriores, no pleno gozo da sua liberdade.

 

 

*Este texto foi escrito a partir de conversas tidas entre a autora e a artista Maria José Oliveira, o arquiteto Alberto Caetano e o galerista José Mário Brandão, preparatórias da exposição Tubolagem na Galeria Graça Brandão, nos dias 13 de agosto, 18 de setembro e 26 de outubro de 2024. Sempre que se abrem aspas no corpo do texto pretende-se respeitar a expressão exata que foi utilizada na conversa.

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