Exposição Actual

Samuel Ferreira – “Antecâmara”

ANTECÂMARA

 

A fatalidade subjacente à vida vincula a ligação do Homem, como ser-para-a-morte,
indissociável do divino. A iminência da perda e a dificuldade despertam a ligação que
sustenta a esperança divina da Salvação. Neste sentido, e desde sempre, que para além
de integrar um ritual, a oferta votiva, expõe a fragilidade humana que é expressa através
de um pedido ou promessa associado a um objecto. A oblação, acto de oferecer a Deus e
aos santos, tem o seu valor iconográfico presente na invocação simbólica das formas,
sendo a expressão da devoção, da consagração da promessa, retribuição e agradecimento
a Deus.

A presente exposição do artista Samuel Ferreira, reúne um conjunto de trabalhos que
propõem o questionamento da fé e do papel da crença enquanto motor salvífico para a
conservação da vida, assim como da inevitável e igualizadora certeza da morte e
desintegração do corpo.

Na procura de explicitar a espiritualidade inerente e da mesma forma que as promessas se
traduzem em alicerces na vida do crente, o artista estabelece um paralelismo formal com
estruturas e objectos que têm como princípio o apoio, a sustentação e o suporte. Deste
modo, apropria-se e reproduz, em cera, objectos estruturais reconhecíveis e que lhes têm
latente o indício de movimento residual da presença do corpo que estagnou.

À cera, matéria primordial dos ofertórios religiosos, conserva o seu valor sacral na medida
em que cada escultura reúne em si um conjunto de promessas e intenções individuais,
correspondentes a antigas oferendas que o artista funde e transmuta nos novos objectos.

Tornando-se metáforas para a necessidade humana de amparo e protecção, o misticismo
que ressoa nos objectos, é ancorado também na própria natureza do material usado. A
cera desdobra-se nas dicotomias sólido e liquido, impermeável e permeável, opaco e
translúcido, maleável e quebradiço. É um material frágil e temporário ao mesmo tempo que
tem sido desde sempre e paradoxalmente e usado para objectos destinados a perdurar.

Num exercício de rigor e ascetismo surge Andaime (2019), obra central da exposição. É a
reprodução fiel de um andaime de construção que parece indiciar e alavancar a ascensão
espiritual e elevação física. Num movimento inverso, Última morada (2018), obra
fotográfica, retrata o movimento descendente, o retorno do corpo à terra e da possibilidade
da ascensão do espírito. Por sua vez, Grampo (2018), refere-se ao objecto que une e
sustêm.

Das marcas visíveis na superfície dos objectos, a obra escultórica Cura (2018), traz à luz o
vestígio da presença humana e da dimensão temporal que se suspende. Parece invocar
também o pedido associado ao auxilio na enfermidade assim como à assunção da
fragilidade corporal.

As obras apresentadas são metáforas da crença enquanto matéria, da expressão máxima
da vontade e fé privadas num movimento que ganha agora expressão ao tornar-se
colectivo e comum.

Talvez todos nos encontremos nesta antecâmara, o espaço e a fronteira que existe na
tensão do Homem na direcção ao eterno ou a qualquer outra forma de transcendência: a
ultrapassagem do contingente e do singular finito.

 

 

Carolina Quintela
Lisboa, Junho 2019

 

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