João Marçal, “Quarto”
O espaço do quarto, presente na sua ausência (presente no título, ausente da tela), torna-se espaço de memória. Um espaço onde estão contidas todas as coisas que, quando evocadas, apelam à memória da sua própria experiência. Mesmo que quiséssemos, não conseguiríamos ver aqui um quarto representado. Nem mesmo por aproximação metonímica, através dos seus objectos ou partes, se poderia fazê-lo. E ainda que subtilmente nos pareçam tecidos, associando a sua aparência padronizada aos objectos ligados ao quarto, nada nos assegura que o sejam. Esqueçamos, portanto, a hipótese (mesmo que verdadeira) de que possam ser tecidos. Ou qualquer outra coisa aproximada ao real, com uma funcionalidade ou passível de causar experiências. Estranhemos o seguinte: o título remete-nos para um espaço, mas não há espaço representado; pelo contrário, o espaço é monotonamente pintado numa superfície plana. E se vemos camadas de tinta que avolumam a superfície, esqueçamo-las também, pois não parecem importar. O verdadeiro espaço é o da memória – uma memória composta por experiências (genéricas) de quem sempre recusou o espaço físico como uma espécie de fobia. É, portanto, memória da recusa de espaço. Mais ainda, memória do confronto com essa fobia e da sua relação com a mesma.
(excerto do texto “Migalhinhas” de Isabel Carvalho, escrito pela ocasião da exposição “Quarto”)
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