Olham uns para os outros através da Grande Cesura que foi a modernidade. Teresa e José Mário perguntam: e se nos ausentássemos da colonialidade moderna e puséssemos os pré-modernos e os pós-modernos a olhar uns para os outros, par-a-par, face-a-face, numa espécie de Casamento de Santo António artístico: casaizinhos em procissão, homens de um lado, mulheres do outro? Cada casal de por si mesmo, de mão em mão, olhos nos olhos, passando em procissão através da modernidade, como se de um espelho se tratasse – todos em fila, por ali fora. Todo o mundo vê bem as semelhanças superficiais entre os membros de cada par. Contudo, tal como nos casamentos, elas nunca chegariam para justificar o enredo amoroso. Que elo de universalidade haverá que prende estes olhares tão simétricos e tão díspares?
De um lado, as peças são identificadas por nomes étnicos (Baga, Kyoko, Dan, etc.), como se os artistas não tivessem identidade pessoal e se reduzissem ao coletivo; do outro lado, são identificadas por nomes de pessoa (Ana Marchand, Victor Pomar, Rui Sanches, etc.), como se cada um dos pós-modernos não fosse também constitucionalmente parte de coletivos, tanto quanto os pré-modernos.
A violência colonial da modernidade é, assim, suspendida—como se fosse uma mãe desviante cuja ausência toda a família finge que não vê. Suspendida, mas não ausente, como lembra o grande pano negreiro, que voa através de toda a exposição. A colonialidade foi-se embora, mas ficou cá por dentro a sua sombra, trabalhando connosco, como a tal mãe que fugiu para a Argentina com o chauffeur. Os não-convidados deste jantar de família afirmam-se pelo silêncio.
Até porque a coisa funciona também noutra direção. Que aprendemos nós com estas estátuas sobre a natureza profunda da pessoalidade? Podemos nós hoje olhar para dentro de nós mesmos, para o interior dos olhos de cada um de nós, sem remeter para o passado humano constituído por estas máscaras e vestimentas mágicas? Será possível esquecermo-nos do impacto que elas tiveram em Freud, em Jung, em Mauss, em Malraux? Não foram eles, afinal, os parteiros da pessoalidade que hoje é imanente em cada um de nós—essa pessoalidade que os psicoterapeutas tentam curar, que o mindfulness quer fazer fruir, que cada um de nós cultiva avidamente?
Em 1907, quando Picasso visitou o Museu Trocadéro a conselho de Derain, foi isto que ele viu (e relatou numa carta a Malraux):
“Quando fui ao Trocadéro, era um nojo: um mercado da ladra, os cheiros … Estava sozinho e só tive vontade de me ir embora. Mas não saí: fui ficando e ficando. Percebi que aquilo era importante demais: estava a acontecer-me alguma coisa, não? As máscaras não eram esculturas como as outras. Não de todo. Eram coisas mágicas. E porque não como as obras dos egípcios ou dos caldeus? É que não nos tínhamos ainda apercebido disso: esses aí eram primitivos, mas não mágicos. Os negros, pelo contrário, eram intercessores. Só nessa altura é que aprendi este nome em francês. Contra tudo; contra os espíritos desconhecidos e ameaçadores. Compreendi: eu também sou contra tudo. Eu também penso que tudo é desconhecido, tudo inimigo. Percebi para que servia a escultura deles, dos negros. Porquê esculpir assim e não de outra maneira? Eles eram cubistas, na verdade, se bem que o cubismo ainda não existisse! De certeza que havia uns fulanos que tinham inventado os modelos e logo outros que os tinham imitado: tradição é assim, não? Mas todos estes fetiches serviam para alguma coisa. Eram armas para ajudar as pessoas a não obedecer aos espíritos, a tornarem-se independentes. Os espíritos, o inconsciente (nessa época ainda não se falava muito nisso), a emoção — é tudo a mesma coisa. Compreendi porque é que eu era pintor. // Encontrei-me sozinho, naquele horrível museu, com máscaras, bonecas pintadas… Les Demoiselles d’Avignon de certeza que apareceram diante de mim naquele dia, mas nada a ver com formas: porque, afinal, foi a minha primeira tela de exorcismo, sim!”
Em suma, essas máscaras, essas armas decoradas, essas vestimentas de curandeiro foram as parideiras dos nossos egos contemporâneos. Quem pode pensar em si mesmo dispensando da mão de Freud, de Jung, de Sartre ou de Malraux? Não foi só Picasso que, nesses anos incandescentes anteriores à Primeira Grande Guerra, descobriu nas máscaras a maior universalidade da pessoa. As carreiras dos grandes antropólogos do século XX (Boas e Mauss são explícitos sobre isso) começaram em frente a vitrines com máscaras africanas. Nas máscaras, eles pressentiam essa efervescência coletiva que era a origem de tudo e da qual, no interior do rio da modernidade, eles se sentiam órfãos.
Nesta exposição, a Teresa e o José Mário ensaiam suspender o véu constituído pela Grande Cesura da modernidade (e a violência colonial que ela necessitou). Nesta confrontação, os ecos de cada peça não só alteram as outras mutuamente, como é-nos oferecido um vislumbre do que Picasso viu: que somos todos ‘contra’. Intercedemos: a nossa humanidade é construída contra a possibilidade e a iminência da morte. Confrontamo-nos, com a tal ‘negatividade’ da vida que Hegel e, mais recentemente, Derrida elegeram como a condição última do ser.
Sabemos bem que nada é feito entre humanos sem violência, opressão, silenciamento — as palavras que dizemos só existem por virtude dos silêncios que as separam! Senão, que significado teria o enorme pano negreiro? Para vir à Galeria Graça Brandão, subimos do Poço dos Negros (o primeiro mercado moderno de escravos africanos) ao Bairro Alto, sem mesmo notar no que a história nos está a dizer! Tal como aqui, olhamos através do vidro do sofrimento para o interior dos olhos de quem está do outro lado. A Grande Cesura não foi só uma cesura cosmológica (isto é, na maneira como vemos o mundo e, por conseguinte, como nos vemos a nós mesmos); foi também um grande buraco de violência onde entrámos todos — brancos, negros, vermelhos, amarelos … foi um caldeamento dessa gama alargada das cores da pele humana que, hoje, nas obras dos artistas pós-modernos queremos que se torne numa bandeira arco-íris — num apelo ao ecumenismo universal. Isto é um discurso onde todos temos inevitavelmente de entrar.
João Pina-Cabral
Maio 2023
André Malraux, Le Miroir des Limbes – II. La corde et les souris, 1976 – tradução livre