é um outro país
Realização: Manuel Santos Maia
Com: Carla Pinto
Montagem: Ricardo Novais Pereira e Manuel Santos Maia
Som: João Ricardo e Manuel Santos Maia
Música: João Ricardo
Assistente de realização: Samuel Silva
Ano: 2017
Para: Ricardo Menezes/Telmo Menezes/Arregaleiro
link para visualização de vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=c7Zn-uN-cgU&t=960s
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A exibição do filme “É um Outro País” de Manuel Santos Maia, no Cinema Fernando Lopes, integra o projeto curatorial que Manuel Santos Maia concebeu para a Galeria Graça Brandão. O projeto inclui exposição individual “Encontro Inesperado”, de Diogo Nogueira e “Uma Cerveja no Inferno”, exposição coletiva com Carla Castiajo, Dylan Silva, Inês Coelho, João Paulo Balsini, Pedro Moreira, Raul Macedo e Susana Chiocca. As exposições são ainda acompanhadas pela mostra de publicações de artista com livraria STET e a performance “Em Sequência” de António Lago.
Reunindo pintura, escultura, desenho, filme, publicações de artista e performance, o projeto explora a ideia de uma cidadania polifónica na celebração da liberdade. A escrita de si, a suspensão das censuras e a interpelação do corpo contribuem para a desmontagem das ideologias dominantes e celebra a experiência imprevista e vital das relações humanas. O diálogo entre as diversas representações exorta o prazer, as paixões, a potência do ser no “amar”, que transcende o particular do humano e se expande a todas as formas de alteridade no horizonte complexo da cultura contemporânea.
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Download: Folha de sala – É um outro país – “ligação terra”
Ligação terra
Por Ricardo Ramos Gonçalves
“O homem tem duas maneiras de se compreender: a partir do mundo das coisas com base no que pode fazer; ou a partir do que pode ser, com base em si próprio. Digamos que a primeira é o vector da existência inautêntica e que a segunda é a bússola da autêntica existência.”
Ernesto Sampaio em Sal Vertido (1988)
Tudo existe na sombra e tudo se revela à luz – forma de separação entre o que é visível e tangível aos olhos, e aquilo que permanece por revelar. Serve isto para o conhecimento geral e, de igual forma, para se esboçar uma história particular. A premissa parece absurda – dir-se-ia que é um uso comum de uma noção perante o que é observável. No entanto, corre-se o risco de se tornar inquietante, à medida que percebemos com ainda é muita a penumbra que nos tapa os olhos. Ricardo Meneses, nasceu a 5 de abril de 1981, no Orgal, concelho de Vila Nova de Foz Côa. Foi menino, jovem adolescente, adulto, ator, homem. Faleceu em 2010, depois de um período longo nas sombras.
Pouco ou nada conhecida, a sua história antes e depois de ter sido protagonista do filme “O Fantasma” (2000), de João Pedro Rodrigues, é agora contada e reflete a narrativa de um sonho (porventura americanizado) que se ambicionava concretizar. Em 2024, volvidos quatorze anos do desaparecimento de Ricardo Meneses, o artista português Manuel Santos Maia (1970) regressa à sua história, a partir do filme “é um outro país”, sobre o qual se debruça este texto. Como alternativa ao título escolhido surgiu a opção “Um Rei no Exílio”, que é também o nome de uma criação do coreógrafo Francisco Camacho. Porque é também sobre o corpo que se fala, ou a condição corpórea de existência e do seu simbolismo. Em todo o caso, interessava sugerir, através de ambos, uma proposta de leitura sobre o país (o outro) que aqui se disputa.
Podemos começar pelo filme mental: o jovem ator surge-nos em aparição. Viajamos com ele para o aterro do lixo, numa quase paisagem lunar, e a criatura (fantasmagórica) ganha contornos mitológicos. Podemos estar do outro lado do espelho ou debruçados sobre a toca de Alice. Entre “O Fantasma” – do qual retiramos este primeiro conjunto de imagens – e a sua vida, pode estabelecer-se um paralelismo. Depois de se fazer ver entre nós, logo desaparece sem deixar rasto. Onde nos situamos então? Voltamos às sombras, porque é nelas que se antevê algo mais. Chegados ao filme de Manuel Santos Maia, escutamos no escuro a voz de Carla Pinto, técnica de cinema na Fundação de Serralves, professora de Ricardo Meneses, algures na década de 1990, que confronta, expõe, emociona e pacífica. Tal como outros objetos artísticos antes deste, não há quase imagens nos frames deste filme. Somos nós, afinal, ‘espetadores emancipados’, capazes de criar uma narrativa nas nossas cabeças?
Conta-nos Lao Tse que o homem do campo tira o seu lucro das estações, que o negociante aprecia o lucro, e que o artesão (aquele que cria) procura artifícios particulares. O que se espera deste último é a realização da sua obra ou a ruína. Podemos afirmar que é dessa forma que se manifesta o filme “é um outro país”, de Manuel Santos Maia. Neste caso, diremos que é “um simples, recto e cortante grito na manhã clara”, citando novamente o poeta Ernesto Sampaio. Conseguido o feito de criar uma imagem nas nossas cabeças, mas sobretudo a narrativa de um homem e de um país em busca de si próprios, somos nós quem assume a posição de autoprojeção.
Debrucemo-nos de igual forma no testemunho de Carla Pinto. Conta-nos a história de um jovem que chega a Lisboa (em busca de uma vida melhor), que se encanta e deslumbra, mas que de igual forma se desilude. Que procura formas de sobreviver e que ao surgir a oportunidade de entrar numa produção cinematográfica não hesita. Ricardo (ou Telmo, como se apresenta na altura) foi escolhido por casting para ser protagonista de “O Fantasma”, primeira longa-metragem do realizador João Pedro Rodrigues. O filme reserva-lhe um lugar de aclamação junto da comunidade queer. “Os gays deram-me tudo”, diz – citado por Carla Pinto. A frase é marcante. Ricardo conheceu nessa comunidade, também ela marginalizada, a mesma ligação-terra que se procurava estabelecer, isto é, uma forma de luta pela liberdade conquistada em nome próprio, voltando às palavras de Jean-Paul Sartre sobre a construção de um “sistema lúcido e coerente a partir do mal”, conseguida por Jean Genet no curso da sua vida.
Da prostituição, saída que encontrou para viver antes de entrar no filme, até à carpete vermelha de Cannes, Ricardo Meneses era ícone desse “filme-acontecimento”, como foi apelidado pela imprensa internacional. Seguiu-se um período de ilusões, de um retorno a casa e de penumbra perante a desilusão das suas próprias expetativas. Manteve-se, até ao final, a ambição de ser reconhecido na terra que o viu nascer. “Queria voltar como um rei”, diz Carla Pinto. É necessário escolher caminhos e depois, chegados ao caudal do rio, olharmos para as duas margens que o rio separa. Em “é um outro país”, emergimos no conflito entre a história de Ricardo Meneses e história de um país (possível, real ou ficcionado) que se ergue no nosso imaginário. Poderíamos jogar com o título de Fernando Namora e mudá-la por fim: retrato real do país ficcional. Ou com o “País possível” de Ruy Belo, ou ainda com o poema de Mário Cesariny: “queria de ti um país de bondade e de bruma/ queria de ti o mar de uma rosa de espuma.”
Manuel Santos Maia não deixa de esboçar um diagnóstico crítico sobre o país, o sistema artístico e a própria História da Arte. Parece detalhe, mas não é. A história de Ricardo Meneses, contada por Carla Pinto, assume-se como justa reflexão sobre a injustiça que existe na ascensão a alguma forma de estrelato. Propõe um olhar sobre a forma como tantas vezes somos levados a colocar-nos em posições desconfortáveis ou a realizar projetos que na sua feitura ou consequência (pós-exposição) acabam por adquirir.
Nisto podemos também ensaiar algumas questões. Até porque, como diz Susan Sontag, “a nossa resposta a uma obra de arte nunca poderá ser puramente estética”, sendo que não pode de igual forma ser apenas moral. O filme de Manuel Santos Maia repõe a verdade? Resgata a memória e consolida o que resta de uma história que se perdeu nas sarjetas? Cabe a cada um a sua interpretação. A arte, como bem prático, seja na forma de um quadro, escultura, fotografia ou imagem fílmica, vem carregada de uma noção de «paz», no sentido que lhe atribui Espinosa: qualquer coisa mais do que adquirida ausência da guerra, porque a arte é o direto efeito da ação do bem que decorre da vontade e por isso uma resolução tomada.
Assim sendo, olhamos para “é um outro país” como um filme sobre a perda de identidade. A mesma perda sentida pelo jovem Edmund (em Alemanha Ano Zero, de Rosselini), que sucumbe na Alemanha (ainda simbolicamente) nazi, em ruínas, e o leva à sua autodestruição sob um caos devidamente instalado. É sobre a forma como o jovem Björn Andrésen (em A Morte em Veneza, de Visconti) se torna “no mais bonito rapaz do mundo” e objectificado apenas por existir. É sobre a forma como uma criação artística pode construir e aniquilar ao mesmo tempo, apenas para recordar o caso da Maria Schneider (em O Último Tango em Paris, de Bertolucci). É sobre a forma como eros e thanatos – pulsões de vida e morte, respetivamente – podem desequilibrar ou até mesmo destruir o que seria um curso existencial. Este texto não se prende, porém, com o filme “O Fantasma”. Prende-se com a vida omissa (melhor seria dizer apócrifa) de Ricardo Meneses.
No seu plano paralelo e refletido, o filme de Manuel Santos Maia glosa sobre a história de um país macrocéfalo, que se podia dividir entre o seu interior e litoral; o seu norte, sul e centro. Entre as suas “terriolas” e lugarejos, e a vida das metrópoles, onde a ambição se dá ao luxo de ser desmedida. Onde existem diferentes velocidades de vivência, mas um mesmo sistema unitário e simbólico. E é, igualmente, um retrato sobre a divergência entre o mundo urbano e rural e sobre os muitos preconceitos e estereótipos que existem em ambos os lados.
Esta é a história de Ricardo Meneses. Mas é mais do que isso. É retrato de um país, de uma época, de um outro filme que aborda também a história de uma comunidade não-visível até então. Escondida na noite. É demasiado tarde para nos tornarmos anjos – parafraseando a frase do escritor marroquino Muhammad Chukri. A história contada por Carla Pinto é a narrativa de muitos de nós e nesse estado da arte proposto por Manuel Santos Maia não são as imagens que nos salvam. O seu filme é, na verdade, uma criação iconoclasta, e um rascunho singular para os muitos que queiram perscrutar na história deste jovem e deste país que, inusitadamente celebra 50 anos de liberdade e democracia.
No fim de “é um outro país”, somos nós como espetadores, a construir uma narrativa visual e de arquivo sobre a vida de Ricardo Meneses. A nossa condição remete-nos, como premissa de uma génese identitária, para uma confusão que se propaga no espaço e no tempo. A construção imaginária de um país como unidade, onde se revela, no entanto, um puzzle composto por peças bastante heterogéneas e que ainda nos deixam no âmago de uma certa obscuridade. Por mais singelo que isso pareça, no fim do filme abre-se um foco de luz, com o projetor virado diretamente para quem se atrever a abrir olhos. Se o fizermos, chegamos então à prova irrefutável que, afinal de contas, tudo existe para lá da sombra.
Biografia
Manuel Santos Maia, Nampula, Moçambique, em 1970.
Vive e trabalha no Porto.
Licenciado em Artes Plásticas-Pintura na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. Doutorando no Doutoramento em Artes Plásticas e Artes Visuais “Modos de Conhecimento na Prática Artística Contemporânea” pela Universidade de Vigo.
Enquanto artista, Manuel Santos Maia expõ e regularmente desde 1999. A sua obra foi apresentada em diferentes países como Inglaterra, França, EstadosUnidos, Bélgica, Espanha, Noruega, Brasil, Macau e Argélia. No projeto “alheava”, Manuel Santos Maia cruza a noção de documento com a experiência individual e familiar, para alcançar uma espécie de ‘memorabilia’ coletiva, enquanto espelho antropológico que nos liga a todos pelo filtro de uma ‘intimidade documentada’.
Enquanto curador comissariou várias exposições individuais e coletivas em espaço alternativos e institucionais no Porto e Lisboa mas também em Faro, Braga, Guarda e Elvas. Organizou e co-organizou ciclos de cinema e mostras de performance. Desde 1998 tem organizado debates, conversas, conferências com criadores de diferentes áreas artísticas, curadores, artistas-comissários, críticos e historiadores. Dos vários projetos curatoriais destacam-se: “Lugares de Viagem-Bienal da Maia de 2015”, Fórum da Maia; “Sub40-para lá da memória conhecida”, Galeria Municipal (a convite de Paulo Cunha e Silva) ou “Em tudo quanto é mundo dito ou não dito”, Cinema Batalha. Comissariou exposições individuais de Silvestre Pestana, Álvaro Lapa, Alfredo Cunha, Pedro Tudela, Cristina Mateus, Carla Filipe, Mauro Cerqueira, Paulo Mendes, Miguel Leal, Nuno Ramalho, José Almeida Pereira, entre muitos outros. Director artístico do Espaço CAMPANHÃ (2008-2009) e do Espaço MIRA (desde 2013). Integrou a equipa do Serviço Educativo do Museu de Arte Contemporânea da Fundação de Serralves (2000-2021). Integrou a equipa do Serviço Educativo da Culturgest Porto. Implementou os serviços educativos do Centro de Arte da Figueira da Foz, Museu Municipal da Figueira da Foz, do projeto Terminal em Oeiras entre outros. Atualmente é docente de “Artes Contemporâneas”, “Arte, Cultura e Comunicação”, “Teoria da Fotografia” e “Tecnologias da imagem”, na Universidade Lusófona do Porto. Foi docente de Pintura, Desenho, Artes Visuais e Fotografia na Escola Superior Artística do Porto (ESAP) e “Introdução às Arte Contemporânea”, no Ballet teatro, Porto.