ANDRÉ SOUSA * NUNO RAMALHO * SÉRGIO LEITÃO
“Geografia Imaterial” reúne um conjunto imprevisível (ou assim há quem o possa pensar) da obra de três artistas contemporâneos. Manuel Santos Maia concebeu a curadoria desta exposição, primeiramente apresentada no Espaço Mira, no Porto, a partir do mote da liberdade das imagens. Três discursos distintos aproximam-se, quando a sua concretização visual é realizada pelo desejo de existirem apenas num mundo onde, por vezes, lhes é exigida uma razão ou permissão para o ser. Coexistem no mesmo espaço, plural e democrático. “Não são estranhas nem estrangeiras a nós [as imagens], arriscando uma existência mínima por não pretenderem ter a capacidade ou a força para se impor perante as outras…” (nas palavras do curador).
Através do registo fotográfico de ações anteriores, Nuno Ramalho apropria-se de imagens por si próprio criadas e transforma-as. Entre a forma e o informe tanto presente no corpo humano, como na própria plasticidade dos materiais e da esponja em particular, figuras cortadas são (re)construídas e suspensas.
Observamos um corpo, despedaçado, sem rosto, nem identidade. Como que “envolvido num combate consigo mesmo”¹, o corpo ataca-se e protege-se, simultaneamente. O diálogo crítico do criador com a obra, a disputa interior constante e a luta universal consequente das rasteiras que cada um se vai pregando a si próprio, tentando logo depois, amparar a queda. Ou então, uma dança entre duas pessoas, dois eus talvez – pairam no ar e deixam-se conduzir pelos estímulos que vão recebendo de fora, de quem por ali passa, do vento que sopra, ou da eventual música que alguém ousasse tocar.
Está presente a ideia de continuidade e movimento, através da sequência de imagens que são colocadas lado a lado ou em confronto e provocam leituras inesperadas. A fotografia que, anteriormente, estava dependente da realidade, parte agora dela, ganhando uma nova dimensão, pela conquista do surrealismo sobre o imaginário.
Na obra de Sérgio Leitão, a figura dilui-se em manchas de cor, mais ou menos iluminadas, dando lugar a paisagens abstratas. É pela assemblage de objetos, do arquivo pessoal do artista e relacionados com o local onde os expõe, que nos apercebemos d’ “a espantosa realidade das coisas”². Ora sobrepostas, ora lado a lado, as imagens não infligem hierarquias, coexistem em harmonia, porque em conjunto contam histórias. Existe uma permanência das imagens, ainda que estas sejam passíveis de ser alteradas – encontram-se em potência, pois estão abertas a inúmeras possibilidades. Cada montagem de coisas é realizada in situ, como não poderia deixar de ser, uma vez que a obra dialoga diretamente com o espaço onde se insere. Porém, é precisamente esse trabalho processual, comummente realizado em atelier, que nos é apresentado a cru como parte integrante da obra.
Por outro lado, os recortes de caráter futurista e os desenhos iconográficos, que remetem para o grafismo da banda desenhada, relacionam-se com as pinturas de André Sousa, onde a energia é representada por um, ou vários, raios. Uma nuvem, branca e serena, dá origem a algo indomável, definido por cores fortes e contrastantes: o raio, que “tanto impressiona pela beleza, como mata.”³ É emoldurado por limites que o tentam conter, mas não são bem-sucedidos. Como que uma tentativa de controlar algo que seria impossível – um fenómeno atmosférico e energético esmagador captado e enjaulado num suporte bidimensional. O artista desafia o olhar e a imaginação do espectador, convidando-o a completar o desenho. Ao olhar as imagens, ouvimos um trovão, que nos atravessa sinestesicamente o pensamento.
Muitas vezes, simbolicamente associado à fúria da Natureza ou do poder e ordem de algum Deus-Pai, é aqui representado numa paleta de cores que se desdobra entre os tons mais fechados e os mais claros, que concedem uma certa ironia e leveza à imagem e à caracterização deste signo.
A ideia de estrutura é algo transversal aos três artistas, que exploram o conceito de diversos modos. Sérgio Leitão organiza as suas composições em filas, pontuadas por pequenas janelas de luz e cor, que contrastam com os fundos pretos ou brancos. Por outro lado, André Sousa brinca com os limites do suporte, desafiando a nível compositivo, a ideia de finitude, o desenho do raio extrapola as fronteiras da tela. A grelha vermelha perfeitamente estruturada na folha de papel chinês forma a base para as consecutivas tentativas do desenhado caligráfico; por oposição às lonas de algodão, onde quase que passa despercebido esse esqueleto, por meio das dobras toscas e subtis da própria tela.
Já o quadriculado da folha de papel que ornamenta a moldura da escultura, de Nuno Ramalho, é preenchido meticulosamente à mão. Criam-se padrões que, segundo um olhar mais desatento, poderão ser percecionados como automáticos no sentido em que poderiam ter sido produzidos por uma máquina. O que surpreende é precisamente o tempo e carinho investidos no desenvolvimento detalhado do desenho/padrão. O trabalho de sombras que certos elementos integrantes apresentam, as diferentes pressões aplicadas aquando da imposição da tinta no papel, as eventuais falhas em detrimento da perfeição do traço repetido são o que elevam o conjunto.
Se a geografia é a ciência que estuda e inter-relaciona os aspetos físicos e humanos na superfície terrestre (a configuração de um determinado espaço) e o conceito “imaterial” se refere àquilo que é incorpóreo e intangível – poderemos pensar nesta exposição “geografia imaterial” como a linguagem do mundo (ou mundos), através da mão do homem e da sua espiritualidade, ou seja, da natureza do espírito, que é relativo ao pensamento ou à mente; que representa indiretamente uma coisa ou uma ideia.
Leonor Guerreiro Queiroz
¹Citado da conversa entre a autora e Nuno Ramalho.
²Pessoa, F. (1915). A Espantosa Realidade das Coisas. In Poemas de Alberto Caeiro (p. 83). Lisboa: Ática, 1946 (10a ed. 1993).
³Citado da conversa entre a autora e André Sousa.
Biografias
André Sousa nasceu no Porto em 1980. Vive e trabalha entre Porto e Frankfurt. Estudou Artes Plásticas na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto e desde então tem apresentado regularmente o seu trabalho.
Destacam-se as exposições individuais: Pince-Nez, Galeria Luciana Brito, São Paulo, 2023; O Fundo das Águas, Galeria Nuno Centeno, Porto, 2022; As Luzes do Tigre, Mira, Porto, 2021; Conversa Inventada, Galeria Nuno Centeno, Porto, 2020; Polly, Kunsthalle Freeport, Porto, 2021; Milenário, Laboratório das Artes, Guimarães, 2015; Millóns de Finais de Ano, Galeria Bacelos, Vigo, 2014; Bonecos de Barro, Galeria Bacelos, Madrid, 2013; A cantiga é de farra, tange o pandeiro, assobia-se no refrão, Galeria Quadrado Azul, Lisboa, 2013; Satekpunkts/ Vanishing Point/ Ponto de Fuga, curadoria de Margarida Mendes, Kim? Contemporary Art Centre, Riga, 2012; Canas ao vento, folhas que rolam, flores esmagadas, areias que se dispersam…, FMAM, Porto, 2012.
E ainda algumas colectivas: Complexo Colosso, CIAJG, Guimarães, 2021; Bienal da Maia, Maia 2021; Entre tecido, Pavilhão Branco, Lisboa, 2021; Saudade, Fosun Foundation, Shanghai, 2018; Can’t Do Nothing, Billytown, The Hague, 2016; Bienal de Fotografia, Flor do Tejo, Vila Franca de Xira, 2016; FOMO, curadoria de Marketa Stara Condeixa, Syntax, Lisboa, 2015; 12 Contemporâneos: Estados Presentes, curadoria de Suzanne Cotter e Bruno Marchand, Museu de Serralves, Porto, 2014; Scultura-fantasma, organização de Gonçalo Sena, Galeria Baginski, Lisboa, 2012.
Está representado na Coleção de Serralves (Porto), Colecção António Cachola (Elvas) e Centro Galego de Arte Contemporânea (Santiago de Compostela).
Foi co-responsável por espaços geridos por artistas como o PêSSEGOpráSEMANA (2002/07); Mad Woman in the Attic (2005/09) e Uma Certa Falta de Coerência (desde 2008, com Mauro Cerqueira). Neste contexto concebeu e organizou exposições como 9KG de Oxigénio, Galeria Municipal do Porto, 2019; Breathless, Silvestre Pestana, Museum of Contemporary Art Santa Barbara, California, 2017; Sconosciuto, Astrup Fearnley Museet, Oslo, 2014.
Em 2007 foi bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian na Spike Island (Bristol, UK) e em 2009 na Kunstlerhaus Bethanien (Berlim, De), onde no mesmo ano publicou “Fabel/Fábula/Fable”, com Tobias Hering. Em 2016 esteve em residência na Casa do Povo (São Paulo, Brasil) onde, com João Sousa Cardoso, co-realizou o filme “Na Selva das Cidades”.
Nuno Ramalho licenciou-se em Escultura pela FBAUP (1999), possui um mestrado em New Genres pelo San Francisco Art Institute (2008), e iniciou o seu doutoramento no Goldsmiths College (2011-2016), concluído na FBAUP (2020).
Desde 1999 que tem participado em diversas exposições individuais e colectivas em Portugal, Alemanha, Brasil, Espanha, Estados Unidos da América, França, Marrocos, Noruega, Reino Unido, e Rússia. Foi curador de vários projetos expositivos, e em 2016 fundou o ciclo mensal de vídeo arte ‘Playlist’, que programou até 2022.
A sua obra está presente em diversas coleções particulares, instituições como CAV, Novo Banco ou Fundação de Serralves, e colecções públicas como as do Estado português e Câmara Municipal do Porto. Artista residente na Triangle France, foi um dos nomeados para o prémio EDP Novos Artistas em 2004. Foi bolseiro Fulbright e da Fundação Gulbenkian.
Desde 2017 que leciona na Escola Superior Artística do Porto. É representado pela galeria Graça Brandão, Lisboa. Vive e trabalha no Porto.
Sérgio Leitão (n. Monte Estoril, Cascais). Artista formado em Artes Plásticas (ESAP e UNIVERSIDADE DE VIGO). Participou no Programa Independente de Artes Visuais (MAUMAUS), em programas multidisciplinares (STÄDELSCHULE, HORDALAND KUNSTSENTER + BIOREGION INSTITUTE) e programas de escultura/fotografia (AR.CO) e vídeoarte (FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN).
As suas obras operam através de uma sobreposição entre referências às vanguardas e formalizações híbridas que articulam imagens, sons e objetos na construção de um imaginário poético singular. Ligações entre natureza e técnica, peso e leveza, os múltiplos usos da linguagem através da imagem, da palavra escrita/falada e do corpo errante, ou ainda a problematização das fronteiras entre natural/artificial, configuram a sua prática artística de acentuado cariz processual. Direcionadas para um lugar de intersecção entre diferentes narrativas, as suas obras procuram criar espaços nos quais as fronteiras entre realidade e ficção se dissolvem. O cruzamento de diferentes media, o diálogo com os contextos de apresentação e a utilização de arquivos são alguns dos seus modos operativos, frequentemente materializados em instalações contextuais que ligam pintura, escultura e vídeo bem como peças autónomas em diversos media.
Projetos (seleção) apresentados no ZK/U, Berlim; P////AKT, Amsterdão; LE 18, Marraquexe; LE CUBE, Rabat; BINZ39 FOUNDATION, Zurique; PROG, P Berna; SITTERWERK FOUNDATION, St. Gallen; ATELIERS DE BELLEVAUX, Lausanne; KASKO, Basileia; SALÓN, Madrid; FRISE, Hamburgo; KONSTEPIDEMIN ART CENTER _ GOTHENBURG BIENNIAL EXT., Gotemburgo; DETROIT, Estocolmo; WEP FOUNDATION, Groningen; WEST CORK ARTS CENTRE, Co. Cork; POUSH/MANIFESTO_PARIS+/ARTBASEL, Aubervilliers/Paris; ATELIER LOGICOFOBISTA, Porto; THE GREEN PARROT, Barcelona; BRNO HOUSE OF ARTS, Brno; SÍM, Reykjavik; HIAP, Helsínquia; RUPERT, Vilnius; HORDALAND KUNSTSENTER + BIOREGION INSTITUTE, Bergen; VIAFARINI, EDICOLA RADETZKY e ACCADEMIA DI BRERA, Milão; MACRO _ MUSEO D’ARTE CONTEMPORANEA DI ROMA, Roma; PALAZZO BEMBO, no contexto da Bienal de Veneza, a convite das FUNDAÇÕES ECC e GAA, Amsterdão/Leiden; DÍNAMO e MIRA, Porto; PARALLEL VIENA, LLLLLL e NOTGALERIE, Viena; VASARELY MUSEUM, Budapeste; MUSEUM OF AVANT-GARDE / IRA / MARINKO SUDAK COLLECTION, Zagreb; CENTERCOURT, Munique; KUB, Leipzig; VASiSTAS, Dresden; HfG, Karlsruhe; MAGT, Atenas; IZOLYATSIA, Kiev; VILLA BELLEVILLE, Paris; MALTA CONTEMPORARY ART, La Valletta; ROSALUX, Berlim; GASTHOF, org. STÄDELSCHULE, Frankfurt; MANIFESTA, Amsterdão; INSTITUTE OF CONTEMPORARY ART, Moscovo; KULTURNI CENTAR, Belgrado; LANDPROJECT, Chiang Mai; PROTOACADEMY, Edimburgo.
Bolsa Internacional FCT, 2009-13; Bolsa SHUTTLE para a exposição GLI ORATORI_ THE SPEAKERS, Veneza, 2019. Em 2024 foi publicado pela CAMERA AUSTRIA INTERNATIONAL _ LABOR FÜR FOTOGRAFIE UND THEORIE, Graz. A sua obra está representada em diversas colecções públicas e privadas, como o MACRO, Roma; VIAFARINI, Milão; MUSEU VASARELY, Budapeste; BRNO HOUSE OF ARTS, Brno; IZOLYATSIA, Kiev; FUNDAÇÃO ECC, Amsterdão ou a FUNDAÇÃO/MUSEU DAS COMUNICAÇÕES, Lisboa.
Prepara exposições no ZENTRUM FÜR KUNST UND URBANISTIK, Berlim; POLO DEL’900, Turim; REDAKTION, Lucerna e CITÉ INTERNATIONALE DES ARTS, Paris, a convite da Academia Francesa de Arquitectura (Jul-Dez 2025), entre outras instituições.