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Frederico Brízida – “Equimose”

 

Porque chora Eros? Uma pergunta à qual Bataille não quis (ou não soube) responder, esforçando-se por prolongar a insondabilidade dessa entidade-força, da sua mística e da sua tragédia. Sempre enevoada a certeza de uma resposta – e daí toda a sua latência e atracção – posso, contudo, arriscar que é por chorar que Eros pode saber-se corpo e participar assim no corpo de outros, nos corpos do mundo, vertendo-se, em lágrimas, da sua altura de deus para o plano dos mortais, esses que verdadeiramente nada compreendem sobre a existência que os anima. Assim o ser de Eros se desfaz noutros rios, noutros corpos, tudo diluindo e misteriosamente aproximando. E assim também o nosso: “um corpo, um rio”, como o sabia Eugénio de Andrade. Um corpo que, intimamente ligado a esse primordial rio de lágrimas, irrompe pela terra – reino das imagens -, enigmaticamente fustigado pelo movimento das suas correntes. É nessa terra que se desenha, que se define em paisagem, trespassando as imagens que também o trespassam e largam nele, como memória, os seus sedimentos. O leito e as margens desse rio, que o moldam e por si são moldados, são o registo da sua passagem. Sempre tensa, ainda que irreprimível (aí está a sombra de Eros), por vezes violenta, outras, calma, feita de ondulações inconstantes, declives inesperados e redemoinhos momentâneos.

 

Também o Frederico sabe que o corpo é um rio. Um rio-corpo que faz o seu caminho mas que permanentemente oscila ao estar inserido no mundo que vê e que lhe retribui o olhar por um toque impossível de definir.  Um toque que pode, por vezes, alastrar-se sob a pele – a do corpo que olha e a das imagens que são olhadas. As obras que o Frederico agora apresenta são a potencial condensação desse toque, entreabrindo o espaço invisível e tumultuoso onde visibilidades conflituosamente se perturbam e entrecruzam desenvolvendo gestos cujo primeiro movimento se iniciou algures num lugar primitivo. Esse é o lugar do indómito desejo de ver e da misteriosa consciência de que também se é visto. Eros não cessa nunca o seu choro.

 

Esse desejo, que podemos chamar erótico (o sentido da gravidade com a qual o rio flui), é aquele com o qual o Frederico se apropria de certas imagens para lhes imprimir, e deixar por nós serem vistas, as marcas de um corpo (neste caso, o seu) que por elas passou.

 

E se pensamos que a formação de equimoses poderá ser unicamente evidência concreta de uma invisibilidade que se alastra no interior de um corpo e se exterioriza na superfície da sua pele, essas nódoas extravasadas poderão igualmente ser o resultado de um fenómeno de sentido inverso na pele do mundo. Aqui, elas dão-se como um acontecimento na orgânica interna das imagens e também na sua superfície, como resultado de um corpo que nelas se projecta e nelas activamente participa. Essas marcas-fantasma fazem parte da história desse corpo mas também da nunca finita história dessas imagens.

 

Trazendo-as (essas que eram, já elas mesmas, imagens concretas de corpos concretos) do universo da pornografia, o Frederico nega-lhes uma eventual associação a imagens pobres ou lisas que, não raras vezes, que lhes atribuímos pelo seu excesso de visualidades, rápido consumo e veloz dissipação, remetendo-as a uma aparição sob sucessivos véus e encobrimentos. Manchas que traduzem um processo de diluição entre as fronteiras do corpo que apropria e as margens dos corpos-imagens que são apropriados; um embaciamento que confirma uma proximidade mútua e indistinta. E isso é tempo, duração, memória. Desejo. O assumir de um encontro intenso com a beleza. O surgimento da opacidade do mundo que é também um dos enigmas de Eros.

 

José Gil diz que o olhar se faz com o corpo todo. Digo-o também: olhemos para as imagens do Frederico com o corpo todo. Elas pedem-nos isso. E talvez seja nesse momento que a ética de Eros – a erótica – pode de novo começar. Como primeira razão da imagem. Como o mais agitado substrato de um corpo (agora também o nosso). Como o primeiro momento, mas também o final, de toda a estética. Para que o choro de Eros não seja vão e para que todos os rios continuem o seu curso e possam assim confluir nesse imperscrutável oceano que todos acolhe e unifica.

 

 

 

David Revés
Lisboa, Junho 2019

 

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