Fabrice Samyn

You See Best in Winter the Nest

(acolhemos uma exposição da Dialogue Gallery)

www.dialoguegallery.pt/

https://dialoguegallery.pt/exeb/dialogue-04

 

Afastando-se aqui das suas pinturas mais detalhadas e figurativas, Fabrice Samyn criou uma série intitulada “En verité je vous le dis, seul en hiver se voient les nids” (2020–21) [na verdade, digo-vos, os ninhos só se vêem no inverno], apresentada pela primeira vez na Dialogue Gallery, em Lisboa. “Verdade” é uma palavra pertinente neste contexto e no âmbito mais alargado da obra de Samyn, preocupada com as marcas existenciais de tempos passados, presentes e futuros. A série, composta por quinze pinturas que representam a luminosidade decrescente do crepúsculo, capta um momento efémero de mudança. O título revela outro tipo de verdade ambivalente: a bela arquitetura dos pássaros está no seu ponto mais visível quando estes estão mais vulneráveis, ou seja, no inverno; da mesma forma, as árvores desenham-se contra o pano de fundo da escuridão iminente, quando o dia se transforma em noite.

 

A passagem do visível para o invisível traz uma claridade insuspeita. Para o artista, esta experiência foi a constatação de uma vulnerabilidade partilhada: o seu corpo também estava a recuperar de uma cirurgia e estávamos, entre 2020 e 2021, altura em que foram produzidas, no início de uma misteriosa pandemia. Por isso, a dimensão das telas foi concebida em relação ao corpo do artista recuperando forças – 150 x 200 cm. O uso recorrente da tinta a óleo, que permite a Samyn trabalhar em camadas, carrega a tradição da pintura como principal veículo de imagens, antes da industrialização. Ou seja, a pintura a óleo sustentava o mundo visível e a sua verdade, bem como o espírito invisível do divino e do sagrado. No entanto, eis-nos no século XXI, conscientes da sexta extinção em massa, uma verdade tão grande como invisível.

 

A olho nu em tempo real. Daí que a pintura a óleo, com a sua ligação ao sagrado, se envolva aqui com a escola iconoclasta da pintura monocromática e com uma arte conceptual encarnada, que se aproxima do ritual. O que pode ser visto como um compromisso com o sagrado. (A obra de Samyn, The Galleries (2020), molduras rectangulares vazias feitas com madeira e folha de ouro, lembra o “templum”, um espaço improvisado e sagrado que os adivinhos romanos erguiam ao céu para prever o futuro no voo dos pássaros que o atravessavam).

 

A saber: o artista foi ao parque, observou as árvores que se esticavam no crepúsculo e regressou rapidamente ao seu atelier para refazer a caligrafia dos seus ramos. Cada pincelada foi guiada pela sua respiração, à semelhança dos Radical Writings azuis de Irma Blank, da década de 1990. Trata-se aqui de um exercício de disponibilidade e atenção. Outra obra a ser activada pelo público, Sit and see light as a feather (2022), espelha esta ética. O azul do crepúsculo é reproduzido num tecido retangular no chão, sobre o qual um banco de madeira roída por insectos nos convida a sentar-nos por um minuto, meditando em frente a um pequeno tronco de madeira da mesma árvore com um osso humano, sobre o qual se ergue uma pena de periquito amarela. Samyn não trabalha sozinho; colabora com pássaros e insectos, com o ar, dentro e fora do seu corpo.

 

A exposição é um espaço de partilha deste entremeio entre o profano e o sagrado, entre a progressão invisível das alterações climáticas e a verdade invisível da presença. O tempo da imagem não é o tempo da natureza, nem o tempo da história, parafraseando e distorcendo a filosofia de Georges Didi-Huberman. Mayahuel, uma obra de 2018, estabelece este estranho paradoxo: as imagens são portadoras de sentido ou o sentido é uma territorialização da imagem algures por via de alguém, apesar das vicissitudes do seu surgimento? Mayahuel é feita com flores de agave secas de Lisboa, com pontos azuis de tinta nas pontas dos seus caules. Historicamente, esta planta chegou à Europa no século XVI, trazida pela invasão da América do Sul por portugueses e espanhóis. O agave tornou-se um símbolo do poder imperialista na Europa, enquanto na cultura asteca, Mayahuel era a deusa a ele associada, significando fertilidade, saúde, dança e longevidade.

 

Dispostas em triângulo na parede como um ex-voto geométrico, da flor mais comprida à mais curta no topo, a forma criada por estes exemplares é ambivalente. Será que a planta é portadora do significado que lhe é atribuído? Será que ela carrega a qualidade irredutível das relações que mantém com os ecossistemas? Será que o faz enquanto imagem?

 

O artista desenha cuidadosamente estas questões com folha de ouro, marcando – celebrando? – os percursos roídos dos insectos na madeira de “Sit and see light as a feather”; ou com a pena de periquito cuidadosamente colocada nos nós da madeira na série Enlightenment (2024); ou ainda fornecendo aos pássaros um ninho feito com um ovo envernizado em “Egg Nest” (2011): as origens e os fins invertem-se, as histórias são reorganizadas, intrigando-nos tanto quanto os enxames de periquitos que misteriosamente tomaram conta dos parques de Bruxelas, afectando o ecossistema local, tal como a planta agave.

 

Vinciane Despret escreveu sobre a “territorialização” das aves. Ela detalhou o quão antropomórficos somos quando analisamos o “território” da perspectiva do animal, em particular dos pássaros. As aves territorializam-se, isto é, escolhem um local para serem vistas e ouvidas, e não uma “propriedade” para ser defendida contra possíveis concorrentes. Talvez, na exposição, o espectador seja convidado a partilhar esta forma de territorialização com o pássaro, movendo-se, respirando e até, quem sabe, cantando.

 

[1] Vinciane Despret, Habiter en oiseau, Actes Sud, 2019.

 

Joana P.R. Neves

 

 

Fabrice Samyn, nascido em 1981 na Bélgica e actualmente baseado em Bruxelas, é um artista conhecido pela sua obra diversificada, que inclui pinturas, esculturas, desenhos, fotografias, escrita e performances. A sua arte explora temas importantes como o tempo, a representação social e a noção de superação de opostos, recorrendo a uma variedade de tradições pictóricas, conceptuais e espirituais das culturas ocidental e oriental. A abordagem artística de Samyn é complexa e multifacetada, caracterizada por uma força poética que leva os espectadores a repensar a sua relação com o tempo, o sagrado e a linguagem, oferecendo uma viagem sensorial e espiritual profundamente pessoal. As suas obras, conhecidas pela sua ressonância poética e capacidade de provocar o pensamento através da metáfora e do contraste, ganharam reconhecimento internacional. Está representado em colecções de renome em todo o mundo, incluindo em França, nos Estados Unidos, na Turquia e na Bélgica.

Data

22.03.2024 - 08.06.2024

Categoria

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