Texto de Exposição
O ponto de vista do pássaro
Da natureza estrutural e conceptual do desenho existem, desde sempre, amplas evidências. Contudo, como tantas vezes sucede, precisamos de que alguém no-lo recorde, para que essas evidências se tornem efectivamente claras. Beatriz Albuquerque traz-nos um desses instantes ao revelar-nos, a montante das obras, a matriz do seu pensamento. Em 2021, nos Depoimentos de Artista criados para o MNAC, a artista partilhou com o público aquilo que definiu como o modo como “controla” os meios e técnicas em que desenvolve o seu trabalho multidisciplinar. Esclarecendo partir da performance, da qual tudo evolui (a instalação, o vídeo, a fotografia, a cerâmica), a artista acumula e sintetiza mentalmente (“a minha cabeça, o meu estúdio”) o próprio tecido da vida, nele entrecruzando os dados da experiência — física e temporal.
A experiência, sendo centrada no corpo, é essencialmente orgânica. Ora, todo o organismo é acção, o que é o mesmo que dizer que todo o corpo é desenho, já que o desenho pressupõe o acto que une pensamento, observação e registo. Antes, porém, de o abordar, permitam-me que me detenha no aspecto mais conhecido do seu trabalho: a performance.
O trabalho de Beatriz Albuquerque tem essa fundamental faceta de movimento em que a imagem do mundo (o real, o visível e o seu constructo) se adapta à visão e acção do seu corpo, à relação entre a percepção e a sensação. Tem, igualmente e por via dessa mesma lógica, aspectos sociopolíticos que se fundem com a complexa noção do tempo entretecida com memórias pessoais e colectivas. Por isso, ela aborda questões que vão da emigração (no caso, a portuguesa) à ecologia, passando pela denúncia da violência nas suas diversas formas psíquicas ou físicas (incluindo as das formas sociais na constante busca de poder e status), e comportando, simultaneamente, um claro gosto pelo lúdico e até pelo humor (vejam-se as performances Crisis of Luck (Crise na Fortuna) e Predict the Future through Chocolate, respectivamente de 2013 e 2024). Da sua obra podemos dizer então ser sempre dotada de uma poética relacional. A essa poética relacional eu gostaria de atribuir o valor do diálogo, a troca feita por via da palavra, uma arte algo perdida na voracidade dos dias, mas a que Beatriz Albuquerque recorre, desenvolvendo-a na via pendular da escuta e da dádiva. Porque o defino deste modo? Porque ao construir a sua obra sobre a observação e o acolhimento de leituras, memórias (próprias e/ou alheias), paisagens, vivências passadas e presentes, a assimilação do mundo tem como contrapartida natural o acto de dar. Depois de se nutrir e de reflectir sobre a nutrição, a resposta ao outro é uma simetria lógica e necessária.
O diálogo é, portanto, uma linha de movimento múltiplo. Se resulta da vontade de ouvir e de se expressar, implica também passar ao outro o resultado da sua curiosidade ou vontade. Veja-se o caso da performance de 2005, Work for free/Trabalho de graça em que a artista criou as obras a pedido do público, oferecendo o seu trabalho, transformando-o em dádiva, retribuição e crítica a estruturas sociais que, acima de tudo, valorizam o dinheiro.
Voltemos agora ao desenho. O conjunto genericamente intitulado Noite & Dia, apesar da nomeação particular de cada peça como Concreto (com seriação definida por numeração romana), é descrita, obra a obra, como “Estudo preparatório dos movimentos dos corpos no espaço (visto de cima)”. Beatriz Albuquerque mostra-nos o ponto de vista do seu movimento a partir de um lugar cimeiro — não apenas o do pensamento que o gera, como o de um supra lugar, de um espaço outro, no qual o nosso papel como actores (literalmente como aqueles que agem) se esclarece na relação. Na reciprocidade. E no modo como o movimento é registado.
Ao conferir a este meu texto o título de ponto de vista do pássaro, refiro-me precisamente ao modo como os desenhos são pensados e descritos pela artista, para nos dar a ver o espaço (chão) em que os movimentos da própria se irão desenvolver na concretização das suas perfomances. Vemos as linhas aqui pré-escritas, antecipando os movimentos do seu corpo. Todos estes 25 trabalhos de desenho sobre papel ou tecido de algodão têm como denominador comum no material riscador o carvão, a que se junta a grafite (apenas cinco estão isentos de grafite) complementados por eventuais pigmentos e marcadores. E todos apresentam intrincadas e cruzadas linhas de diversas cores que riscam o espaço como trajectórias cartográficas do amplo cenário do mundo para os muitos mundos astronómicos, pontuados por planetas ou outros corpos astrais.
Dança e desenho (como toda a performance e todo o comprimento de onda da criação desta autora) constituem esse movimento pendular, de ida e vinda, de passo e contrapasso, de acolhimento e dádiva. Assim se esclarece a pontuação dos vídeos e a proposta de novas performances que irão incluir a programação.
Os desenhos são, portanto, previsões; mas são, em particular, puro desenho, o prazer da geometria na sistematização do gesto. Nesse sentido, são espacial e corporalmente irreais, porque apenas implicam ângulos vivos. Não têm a modulação das órbitas, antes de traçados a régua que orientam o olhar e o corpo que o segue (sabemos bem como os bailarinos têm essa noção geométrica do espaço e como o olhar lhes guia os corpos nas suas evoluções espaciais, mesmo quando se mexem, como na dança clássica, dentro de um círculo imaginário). Mas, em seguida, a presença de corpos circulares, ou de meias luas, sugere-nos uma outra referência: retirando-nos o chão, oferece-nos o infinito. O mapa das deambulações de Beatriz é, portanto, um guia no palco ou uma carta estelar? Será que a sua consciência política, histórica, ecológica, a coloca num panorama suprapalco, afirmando o seu movimento pessoal numa deriva cosmológica? Gosto de pensar que, de alguma forma, assim é. E que o desenho, que tudo antecede, tudo une e tudo significa. Ao ponto de haver figuras de grafite (resultado de uma residência na Viarco, empresa cujos lápis constituem uma memória comum a praticamente todos os portugueses). Nesse caso, fazendo-o com formas humanas (Beatriz transmutada em Vénus?) o desenho de novo traça, molda e aponta.
Emília Ferreira
Almada, 2 de Abril de 2025.
BIO
Beatriz Albuquerque (Porto, Portugal) é artista, performer, professora e investigadora. Tem o Doutoramento pela Columbia University em Nova Iorque com uma Bolsa Fundação para a Ciência e a Tecnologia e com uma Bolsa Fulbright/ Fundação Luso-Americana.
Concluiu a Licenciatura na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto e o Master of Fine Arts no The School of the Art Institute of Chicago.
Foi galardoada com vários prémios e menções como o Myers Art Award pela Columbia University, Nova Iorque assim como, o Prémio Revelação pela 17ª Bienal de Cerveira em Portugal e o Prémio de Performance Ambient Series, PAC/edge Performance Festival, Chicago.
Tem colaborado com centros de investigação, cátedras e institutos europeus e americanos, integrando projetos, pronunciando conferências e publicando como ensaística que coloca em diálogo as suas áreas de formação e interesse científico como pela interdisciplinaridade dos media a que recorre, entre eles, desenho, imagens em movimento, fotografia, instalação e sobretudo performance.
Tem vindo a realizar várias exposições individuais e coletivas, a nível nacional e internacional destacando-se alguns lugares onde apresentou o seu trabalho: Museum of Contemporary Art of Chicago, Chicago Cultural Center em Chicago; Chelsea Art Museum, The Kitchen, Emily Harvey Foundation, Anthology Film Archives, Queens Museum, MoMA PS1 New York; 10th International Istanbul Biennial na Turquia; 2nd Thessaloniki Biennale of Contemporary Art na Grécia; Museu Brasileiro de Escultura e Ecologia em São Paulo; Museo de Arte Contemporânea de Bogota na Columbia; Museo de Arte Contemporânea de Caracas na Venezuela; Galeria Graça Brandão, Plataforma Revolver em Lisboa; Museu de Serralves, Galeria Nuno Centeno, Galeria MCO no Porto, entre outros (www.beatrizalbuquerque.com).